~ quarta-feira, fevereiro 20, 2002
Eu já disse que estou escrevendo um livro? Não, né? Pois é, eu estou. Pelo menos tô tentando.
Uma coisa engraçada é que ontem eu tava lendo um livro que achei muito bom, muito bom mesmo: Dentes guardados, do Daniel Galera. Ele era um dos colunistas do COL, o pioneiro zine por e-mail que virou referência no mundo dos fanzines e influenciou muita gente. Eu já tinha lido alguns textos do Galera, mas fiquei impressionada com o livro. É bem escrito, tem referências que são atuais mas não deixam datado, mostra sensibilidade, um olhar bem particular, é criativo. Daqueles livros em que a leitura flui fácil mas ao mesmo tempo faz pensar. Procura no site da Livros do Mal, editora do Galera mais o Daniel Pellizzari e o Guilherme Pilla, que também eram do COL.
Mas então. Eu tava lendo o conto "Os mortos de Marquês de Sade", e teve um trecho que me chamou a atenção:
"Respondi que estava pensando que a vida é como uma queda. É como cair, cair num buraco muito alto, onde nem dá pra ver o fundo, mas temos certeza de que ele existe. A vida é uma queda, e a vertigem é o melhor de qualquer queda. Quem sabe a vertigem de uma vida é essa sucessão incontrolada de desejos, medos, anseios, alegrias e toda espécie de sentimentos que, deslumbrados, nos esforçamos em entender e controlar? Mas por mais que controlemos a nossa queda, ela sempre resultará no mesmo encerramento fatídico: nos emborrachamos lá embaixo. Logo, por que não encarar nosso fim, inclinando a cabeça para baixo, fitando corajosamente o abismo que se revela, fazendo de nossa vertigem algo intenso, válido, perturbador? Por que não fazer da morte a obra-prima da vida, o desfecho glorioso de um livro complicado e difícil de entender, mas que contudo nos leva ao riso e ao choro, à dor e ao gozo, à paz e ao desesespero?"
Vertigem é o nome do meu futuro livro. E esse texto aqui embaixo faz parte dele:
Não chora, eu disse. Ela soluçava, e eu, que há muito tempo não chorava, não derramei uma lágrima sequer, fazendo ela pensar que eu não me importava. Claro que eu me importava, mas precisava ir. Parecia que eu estava indo para outro país, quando na verdade eu estava apenas me mudando para outro bairro, a meia hora de carro dali. Mas para ela aquele momento era muito triste. Era como se eu não gostasse dela.
A única mulher entre três filhos, eu tive todas as expectativas dela sobre mim, e fui a que mais decepcionou. Eu, a rainha das coisas inacabadas. A de pensamento ágil, de vários talentos, que facilmente aprende. Essa sua inteligência me irrita, dizia ela. Decepções, só isso. Uma atrás da outra. Quando criança, eu cumpria bem o papel de princesinha do castelo que existia na imaginação dela. Uma princesa um tanto tímida e triste demais, mas nada que o tempo não resolvesse, ela acreditava. Mas com o tempo eu fui mostrando que estava longe de ser o que ela espera. Dura, agressiva, rancorosa. Aos olhos dela (e de muita gente), eu tinha me transformado no meu pai.
E agora era aquilo: mais uma decepção. Onde foi que eu errei?, minha mãe se perguntava. Ela esperava que eu fosse sair de casa para finalmente me casar, o casamento mais lindo de todos, como ela havia sonhado. Mas eu estava saindo de casa para morar sozinha, e era como se eu dissesse que ela era a mãe que eu não queria.
Ela não entendia que precisava ir. Não entendia que eu só precisava ficar um pouco sozinha. Eu, meus discos, meus livros, meus papéis, num lugar onde a minha vontade de ficar só não soasse como desprezo ou falta de apego aos que estão à volta. Eu, que sempre preferi a madrugada, hora em que o resto da casa dormia e eu podia ficar à vontade com a minha solidão. Eu, que vivia no quarto, às voltas com meus pensamentos incessantes mesmo durante o sono. Só que agora o quarto estava pequeno demais.
De tão triste com tudo o que eu me tornei, ela não conseguia enxergar que, na verdade, tinha me influenciado muito mais do que qualquer outra pessoa. Eu tentava ser prática e racional, mas inconscientemente tinha uma visão romântica do mundo. Aos 25 anos, eu parecia uma heroína novecentista.
Não chora, mãe. Eu te amo. Tchau.
~ segunda-feira, fevereiro 18, 2002
Triz
Às vezes é preciso muito pouco para estragar coisas importantes.
Eu tive medo. E recuei.
Ainda bem.
Espelhos
Tão bonita. De uma beleza que, mesmo com a idade, salta aos olhos. A inteligência é mediana (quem precisa de mais que isso?). E o coração, do tamanho do mundo. Nunca vi alguém tão bom quanto você. E, mesmo assim, uma vida tão triste, quase vazia de sentido.
Mas você continua. O mesmo dia-a-dia há anos, as dificuldades que nunca param de surgir, e você ainda consegue sorrir. As piores traições possíveis, e você ainda agradece a deus. Injustiça, ingratidão, e você não guarda mágoa nem rancor. E ainda acredita que as coisas vão melhorar. Quando?
Eu olho pra sua vida e não vejo perspectiva nenhuma de melhora. E tenho pena desse jeito Pollyanna de meia-idade. Ou será uma certa inveja?
Não. Eu tenho é medo de virar você.
~ quinta-feira, fevereiro 14, 2002
A ponte
Fazia tanto tempo, né? Muito tempo desde a última vez em que a gente tinha se encontrado ou mesmo falado. Àquela altura o álcool já tinha feito um certo efeito, e eu estava rindo um pouco mais que o habitual, mas ainda era eu ali, e ainda era você na minha frente.
Desde a última vez tanta coisa tinha se passado e eu, que por algum tempo procurei fugir de você "como o diabo da cruz", não me senti mais desconfortável nem tive medo. E se por vezes eu te culpei por tudo o que eu estava passando, agora eu me sentia bem ao seu lado de novo. Agora eu entendia que você tinha feito o que devia: foi embora antes que não restasse mais nada de bom entre a gente. E achei que podíamos fazer o que você sugeriu quando foi: ser amigos.
Mas aí você veio. Falou que estava quase chorando de ciúmes do conhecido com que eu conversava minutos antes. Disse que sentia minha falta, que estava com saudades. E eu levei um susto. Pra mim, foi tudo inesperado. Depois contei o que aconteceu pra alguns amigos, e um deles perguntou se eu não tinha sentido um gosto de vingança. Não. Eu senti pena. Porque pra mim era diferente. Agora eu só te queria como amigo.
Eu sinto sua falta também, claro. Sinto falta da ponte, do longo caminho até a minha casa ou a sua, das noites trabalhando ou vendo vídeo juntos, das fitas que você gravava pra mim (lembra daquela que eu achei que era pra mim e era pra você mesmo?), de poder dormir no seu colo no ônibus, do seu olhar de criança me pedindo alguma coisa, de você ouvindo com atenção (e tanta confiança!) a minha opinião sobre os seus trabalhos ou qualquer outra coisa, da letra que você escreveu pra mim... Na verdade, eu não sinto falta exatamente de você, mas do que nós éramos juntos.
Calma. Isso não quer dizer que você não seja mais importante pra mim. Você é, acho que vai ser sempre. Você continua tendo sido o amor da minha vida. E é por isso que eu continuo querendo não te perder. E encontrei o único jeito que me parece possível disso acontecer: sendo sua amiga. Porque nós nunca mais vamos ser os mesmos daquele tempo. Nada vai ser do mesmo jeito. Nem eu, nem você, nem a ponte.
~ terça-feira, fevereiro 12, 2002
Intimidade
Claro que é autobiográfico. Eu sou auto-referente, o tempo todo. Isso te assusta? Você se sente invadido, intimidado, exposto? Mas não é só você, são vários juntos num só. Na verdade, sou eu, é o meu olhar que está ali, o meu sentimento. Não posso evitar, desculpa. Não, não é desabafo: eu só preciso de verdade no que eu escrevo, se eu tentar me distanciar pra escrever vai ser uma coisa vazia, falsa. Eu não preciso ser boa, só preciso ser verdadeira. É, PRECISO. Não tem querer aqui. Eu já te disse, disse pra tantas pessoas: essa porra te escolhe. A literatura. Não tem jeito. E aí saem coisas assim, como o que está te perturbando agora. Como assim agora não restam dúvidas? Dúvidas do quê? Mas eu só falei coisas que você está cansado de saber, conversas que a gente teve. Claro, não foi literal, não vou ficar contando minha vida em detalhes por aí. Era só o que eu tava sentindo, uma idéia que me veio naquele dia em que você dormiu aqui depois de muito tempo e nós ficamos conversando sobre outros tempos, sobre as nossas vidas agora (tanta coisa aconteceu enquanto nós não nos vimos nem falamos direito) e sobre como nós continuamos os mesmos de sempre. Tudo muito lindo. Achei bonito, só, e quis escrever sobre a gente. Tantos textos que eternizaram homens efêmeros, por que não fazer um sobre o que, como diz você, vai permanecer na minha vida? Não fica assim, ninguém vai saber sobre quem é. Só você.
Amizade
Se eu tenho medo de me apaixonar por você? Talvez. Mas agora você está me pedindo colo e eu não tenho por que recusar, a não ser por tudo aquilo de ruim que você me conta que faz, e que eu sempre acho que não é você, é uma máscara, que você tira enquanto conversamos – ou será que na verdade você põe a máscara quando está comigo?
Eu não sei, mas acontece que você fica feliz quando, ao contrário dos outros, eu digo que acredito quando você diz que quer ser uma pessoa melhor. Você me disse que não resiste quando uma mulher mexe nos seus cabelos (eles estão diferentes da última vez que eu te vi, mas estão lindos, deixa de ser bobo) e eu tenho medo de que você pense que eu estou fazendo isso agora para insinuar alguma coisa, como aquelas que descobriram um dos seus pontos fracos. Eu não precisei descobrir: você me contou, numa de nossas conversas que parecem nunca se esgotar.
Você diz que todas elas vão passar um dia e eu sou a única que vai estar sempre na sua vida, e eu sorrio bobamente por dentro, embora às vezes uma ou outra delas te faça esquecer um pouco de mim. É bom ouvir isso, e você volta e meia escolhe as palavras certas pra me dizer. Eu fico feliz quando você escuta o que eu digo, e é bom dividir impressões sobre um livro ou a vida. É por isso que eu também escuto os seus conselhos – embora nem sempre concorde com eles – e que você sabe me irritar de maneira que eu fique com raiva de você por não mais que cinco minutos.
Talvez eu esteja somente sendo ingênua como sempre, mas você não é assim também? Não? Ah, pára com isso, tira essa máscara. Vem cá, deita aqui. Você, não o personagem.
~ domingo, fevereiro 10, 2002
Previsão do tempo
Faz calor em todo o Rio de Janeiro
só aqui dentro continua frio.
Falta
Tantas bocas
olhares
palavras
suores
mãos
sorrisos
suspiros
sussurros
E nenhum é seu.
~ segunda-feira, fevereiro 04, 2002
CINEMA
I'm Straight
Augusto Olivani
A faixa amarela no asfalto passa bem mais devagar que em Estrada perdida. E David Lynch faz questão de escancarar isso na face do espectador, numa auto-paródia. Outra: o sobrenome do personagem principal Alvin, a palavra straight, é outra brincadeira do diretor, conhecido por filmes que não respeitam a narrativa " straight" confirmada por 99,99% dos outros cineastas da face da Terra.
E Straight Story, a fábula de um velho teimoso que vai visitar o irmão montado em um aparador de grama, é filme que reflete uma natureza humana que não a retratada nos filmes anteriores do diretor (mesmo no recente Mulholland Drive). Qualquer tipo de obsessão doentia está ali – afinal, quem em sã consciência montaria numa sucata que anda a 5 km/h? A sua técnica idiossincrática também – closes peculiares, o silêncio, a exploração de situações, personagens e fixações pouco convencionais.
Mas a temática é outra. Talvez algo que Lynch precisasse fazer: uma história convencional, "straight". E tratou de transformar essa necessidade em uma experiência espiritual. Espiritual para ele – ao partir para um gênero que nunca explorou –, para Angelo Badalamenti – fazendo uma trilha sem ser soturna, caipira como poucos imaginariam –, para Richard Fansworthy – o personagem/ator idoso que encara a travessia – e para o próprio espectador – quem se sente desmontado por ser surpreendido pela história tão desafiadora.
Desafio esse que é encarnado pelo próprio Alvin Straight, homem de rosto e corpo castigados, ao montar seu cortador de grama, contra a vontade da montanha e do rio Mississipi e de seus amigos e de sua filha. Todos vítimas do cotidiano. Mas assim que Alvin ouve que seu irmão sofreu um derrame – o mesmo irmão com quem brigara 10 anos atrás –, ele sabe que precisa fazer algo. E aceita os riscos.
E por que raios viajar 500 quilômetros num aparador de grama? Desculpa esfarrapada 1: porque não tem carteira de motorista e desculpa esfarrapada 2: porque não gosta de viajar de ônibus. Mas todos deveriam saber que ele vai dessa forma pois precisa fazer isso, precisa engolir o orgulho e exorcizar seus demônios. Enfim, é uma travessia, daquelas que, como num conto, ninguém pode sair do mesmo jeito que entrou.
Como numa metáfora da própria vida, David Lynch aceita os riscos e consegue segurar duas horas de filme de uma história tediosa sobre alguém que viaja num aparador de grama. O segredo? Explora as angústias e os segredos comuns a todos, que qualquer um guarda dentro de si, e mostra a melancolia briosa que existe em alguém que sofre, dentro do olhar catalisador de Straight.
Pois quem já viajou sozinho ou se expôs solitário ao meio do nada, do interior esquecido, onde nada acontece, sabe que o silêncio do vento e das folhas diz mais que qualquer frase confortadora. Sabe que domar seus próprios medos e pendências é difícil, mas necessário. E é assim que David Lynch entrega uma obra bela e elevatória, transformando a travessia de Straight em um replay da vida de qualquer um. De como a vida de cada um passa devagar e como você provavelmente vai ver tudo que ela tem para mostrar. A questão é se você vai abrir seus olhos e encarar ou se vai preferir ficar assistindo tempestades de raios da janela de sua casa.
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* Augusto Olivani é jornalista e editor do zine Lo-Fi. Escreve pra ele perguntando quando sai o próximo...
~ sexta-feira, fevereiro 01, 2002
Mais dúvidas
Fico pensando se você
também anda escrevendo sobre mim.
Dúvidas
As coisas não foram como eu pensava. Talvez não tenham sido, também, como você pensou. Ou talvez você nem tenha pensado. Ou tenha pensado, mas não se importado.
As possibilidades são muitas na minha cabeça. Queria tanto que você dissesse alguma coisa que me fizesse entender...
Ou o silêncio é o seu recado?
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