Eu já disse que estou escrevendo um livro? Não, né? Pois é, eu estou. Pelo menos tô tentando.
Uma coisa engraçada é que ontem eu tava lendo um livro que achei muito bom, muito bom mesmo:
Dentes guardados, do
Daniel Galera. Ele era um dos colunistas do
COL, o pioneiro zine por e-mail que virou referência no mundo dos fanzines e influenciou muita gente. Eu já tinha lido alguns textos do Galera, mas fiquei impressionada com o livro. É bem escrito, tem referências que são atuais mas não deixam datado, mostra sensibilidade, um olhar bem particular, é criativo. Daqueles livros em que a leitura flui fácil mas ao mesmo tempo faz pensar. Procura no site da
Livros do Mal, editora do Galera mais o Daniel Pellizzari e o Guilherme Pilla, que também eram do COL.
Mas então. Eu tava lendo o conto "Os mortos de Marquês de Sade", e teve um trecho que me chamou a atenção:
"Respondi que estava pensando que a vida é como uma queda. É como cair, cair num buraco muito alto, onde nem dá pra ver o fundo, mas temos certeza de que ele existe. A vida é uma queda, e a vertigem é o melhor de qualquer queda. Quem sabe a vertigem de uma vida é essa sucessão incontrolada de desejos, medos, anseios, alegrias e toda espécie de sentimentos que, deslumbrados, nos esforçamos em entender e controlar? Mas por mais que controlemos a nossa queda, ela sempre resultará no mesmo encerramento fatídico: nos emborrachamos lá embaixo. Logo, por que não encarar nosso fim, inclinando a cabeça para baixo, fitando corajosamente o abismo que se revela, fazendo de nossa vertigem algo intenso, válido, perturbador? Por que não fazer da morte a obra-prima da vida, o desfecho glorioso de um livro complicado e difícil de entender, mas que contudo nos leva ao riso e ao choro, à dor e ao gozo, à paz e ao desesespero?"
Vertigem é o nome do meu futuro livro. E esse texto aqui embaixo faz parte dele:
Não chora, eu disse. Ela soluçava, e eu, que há muito tempo não chorava, não derramei uma lágrima sequer, fazendo ela pensar que eu não me importava. Claro que eu me importava, mas precisava ir. Parecia que eu estava indo para outro país, quando na verdade eu estava apenas me mudando para outro bairro, a meia hora de carro dali. Mas para ela aquele momento era muito triste. Era como se eu não gostasse dela.
A única mulher entre três filhos, eu tive todas as expectativas dela sobre mim, e fui a que mais decepcionou. Eu, a rainha das coisas inacabadas. A de pensamento ágil, de vários talentos, que facilmente aprende. Essa sua inteligência me irrita, dizia ela. Decepções, só isso. Uma atrás da outra. Quando criança, eu cumpria bem o papel de princesinha do castelo que existia na imaginação dela. Uma princesa um tanto tímida e triste demais, mas nada que o tempo não resolvesse, ela acreditava. Mas com o tempo eu fui mostrando que estava longe de ser o que ela espera. Dura, agressiva, rancorosa. Aos olhos dela (e de muita gente), eu tinha me transformado no meu pai.
E agora era aquilo: mais uma decepção. Onde foi que eu errei?, minha mãe se perguntava. Ela esperava que eu fosse sair de casa para finalmente me casar, o casamento mais lindo de todos, como ela havia sonhado. Mas eu estava saindo de casa para morar sozinha, e era como se eu dissesse que ela era a mãe que eu não queria.
Ela não entendia que precisava ir. Não entendia que eu só precisava ficar um pouco sozinha. Eu, meus discos, meus livros, meus papéis, num lugar onde a minha vontade de ficar só não soasse como desprezo ou falta de apego aos que estão à volta. Eu, que sempre preferi a madrugada, hora em que o resto da casa dormia e eu podia ficar à vontade com a minha solidão. Eu, que vivia no quarto, às voltas com meus pensamentos incessantes mesmo durante o sono. Só que agora o quarto estava pequeno demais.
De tão triste com tudo o que eu me tornei, ela não conseguia enxergar que, na verdade, tinha me influenciado muito mais do que qualquer outra pessoa. Eu tentava ser prática e racional, mas inconscientemente tinha uma visão romântica do mundo. Aos 25 anos, eu parecia uma heroína novecentista.
Não chora, mãe. Eu te amo. Tchau.