Sob o cinza
Não tive muitas lembranças da primeira vez em que estive lá. Não sei o ano. Sei que fomos de carro, eu e meus pais. Aliás, não sei se aquela foi mesmo a primeira vez, porque eu me lembro também de ter ido de avião com a minha mãe uma outra vez, não sei se antes ou depois.
Quando voltei lá e já não era mais criança, ainda assim não bateu. As lembranças já são esparsas, embora não tanto quanto as da infância. Mas lembro bem da primeira vez que a cidade me marcou. Fui para ver um show. Um show, se espantou minha mãe. Quem é que vai a outro estado pra ver um show?
Pois dessa vez eu notei bem o bloco cinza que se estendia no céu, uma nuvem densa, espessa, contínua, cinza como nenhuma cidade até então tinha se mostrado pra mim, um vento gélido cortante como a minha cidade jamais ousara ter.
Nesse mar de prédios, asfalto e fumaça, de poucas e tímidas árvores, um sotaque que por vezes fere o ouvido, meninas e mulheres muito maquiadas e arrumadas (e homens também muito arrumados), trânsito enlouquecedor, todos os clichês de uma moderna-e-movimentada metrópole, apesar da insistência amiga para ficar mais uns dias, a sensação que não desgrudou era de que eu não pertencia àquele lugar.
A partir daquela vez, todas as outras foram menos traumáticas. Conhecendo mais alguns lugares – mas sempre há mais e mais a descobrir, às vezes essa cidade parece infinita –, rostos, bairros, ruas, estações de metrô, me sentia menos perdida. Um lugar é muito mais interessante depois que se tem uma história nele: saí, bebi, me apaixonei, esperei em vão, dancei, chorei, conheci pessoas, encontrei outras por acaso... A sensação de solidão, no entanto, era a mesma. Lá estava eu, um grão de areia perdido numa multidão, uma alma vagando invisível por entre todas as outras, coadjuvantes do meu monólogo. Continuava a sensação de não pertencer àquele lugar.
E então da última vez que eu estive lá, mais uma vez eu tive medo. Porque aquela cidade me assusta, faz eu me sentir pequena e frágil. E talvez tenha sido esse medo que me fez vomitar. Eu pus pra fora cada coisa que ingeri sob o céu sem estrelas, eu quis botar pra fora o mal-estar e não consegui, eu quis chorar de dor e também não consegui.
Mas eu descobri que é possível ser feliz naquele cinza. Mesmo com a confusão, os medos, os desentendimentos. É possível esquecer a dor, o enjôo, o vômito. O trânsito irritantemente engarrafado, as pessoas olhando de cara feia pra você que está passando mal: esquecer. Com o improvável, com o imprevisto. Com o inevitável (como se alguém tentasse evitar...). Sem fazer nada. Falando compulsivamente e calando sem constrangimento.
É possível ser feliz simplesmente por olhar e receber esse olhar de volta. Por dividir, por acrescentar. Por ser tudo muito natural, ainda que sujeito a tropeços, dúvidas e certezas. Por ser muito intenso.
Com tudo isso, ainda assim eu não pertenço àquele lugar. Mas alguma coisa nele agora me pertence.