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~ segunda-feira, outubro 21, 2002
 
Comum

Foi se tornando uma coisa comum na cidade. De tanto ver, acabamos nos acostumando com os vendedores nos ônibus. E eles todos meio parecidos, embora cada um com um tipo de discurso – uns apelando para a pena, outros ameaçando de forma semi-velada, outros sendo criativos e ainda os que apenas repetem o padrão. Pode até haver um certo incômodo, mas em geral não nos abalamos muito com eles. Às vezes viramos o rosto para o lado. Às vezes compramos alguns de seus produtos, por necessidade mesmo ou pena.
Sempre procuro não me deixar anestesiar, não achar comum a situação difícil que o nosso país vive. Ainda me comovo com pessoas morando na rua, gente tendo que revirar latas de lixo, crianças maltratadas que não têm por que não virar bandidos. Eu me esforço pra não achar normal e não esquecer que é gente que está ali, porque o mundo parece que se esquece – e você percebe isso quando descobre que apenas conversar um pouco com uma pessoa que vive na rua significa muito pra ela, e ela fica muito agradecida, como se você estivesse fazendo grande coisa. Sim, porque essas pessoas acabam se tornando quase que invisíveis para o mundo involuntariamente.
Mas um dia estava eu num ônibus. E entrou aquele moço, que devia ter pouco mais a minha idade. Ele não era como os outros, sem dentes, com o rosto maltratado pelo tempo ou uma tentativa de falar bonito que muitas vezes soa falsa, quase ridícula, até. Não lembro bem o que ele disse, mas lembro que não tentou ser engraçado nem causar pena. Talvez estivesse meio envergonhado por estar ali, vendendo balas no ônibus. Só sei que eu fiquei muito abalada. E percebi que, sim, eu tinha me deixado anestesiar, eu tinha me acostumado com o número cada vez maior de pessoas vendendo coisas nos ônibus.
Não que seja um tipo de trabalho degradante – e mesmo assim não estou aqui pra julgar. Se é trabalho, pronto, ninguém tem nada com isso. Mas é reflexo do desemprego crescente no país. Aquelas pessoas que ficam o dia inteiro de ônibus em ônibus tendo que contar com a simpatia dos motoristas e algum sentimento dos passageiros que os faça comprar não estão ali por opção, mas porque atualmente é uma alternativa viável para que elas possam se sustentar. E eu só me dei conta de que tinha acostumado quando vi aquele cara. Um garoto branco, vestido discretamente, bem-educado, a fala correta. Um garoto como eu.

 

Lay-out por Davi Ferreira