Soninha não estava feliz com o casamento. Quase todo dia o marido saía do trabalho e ia beber com os amigos, chegando sempre tarde em casa. Eles quase não conversavam mais. Transar, muito menos - e quando ele fazia algum gesto demonstrando interesse, ficava irritado se ela estava cansada ou se sentindo mal. Claro que ela estava cansada: era ela quem fazia tudo em casa, eles não tinham empregada. Além de tudo, trabalhava fora, porque uma coisa que ela não tinha era medo de trabalho.
Fazia pouco tempo tinha descoberto que o marido estava tendo um caso. Com a Vanessa, uma vagabunda do trabalho, uma dessas mulheres vulgarzinhas de cabelo pintado de louro com a raiz aparecendo que sempre vão pro trabalho com uma roupa menor do que podem usar (ela não era magra) e que já saíram com mais de metade do escritório. Como é que o Carvalhal tinha caído no papo de um tipinho daqueles? Homem é tudo sem noção mesmo, pensava, triste. E o marido, cada vez mais distante.
Uma tarde, Soninha e Carvalhal foram andar de moto. A moto era uma aquisição recente, mais um dos estranhos hábitos adquiridos por ele com a chegada da "idade do lobo" - as outras eram as roupas de jovem, os tênis, os óculos escuros (ele não percebia que, na verdade, não ficava jovem, e sim ridículo). Ela até que achava legal andar na garupa da moto, embora soubesse que já não estava mais na idade. De repente, a moto derrapou, e os dois caíram no chão. Soninha, que era muito bem-humorada, caiu de bunda e levantou-se rindo da situação. Fez um comentário engraçadinho e viu que Carvalhal não respondia. Quando olhou pro lado, o susto: ele estava desmaiado.
Pegou um táxi e foi para um hospital próximo. Esperou algum tempo, angustiada, e logo o médico veio conversar. Carvalhal estava em coma e ia ser removido para a UTI. Com a queda, tinha batido com a cabeça do chão. Ela não estava acreditando naquilo, há poucos minutos ele estava bem, na moto...
Os meses seguintes foram angustiantes. Só quem já teve alguém querido em coma pode entender. Porque você tenta se preparar para a morte da pessoa, você repete a si mesma que ela vai ficar bem, mas no fundo você acredita que vai ser como nos filmes de Hollywood, que algum milagre vai acontecer e um dia ela vai abrir os olhos e fazer uma piadinha que vai te fazer rir e chorar ao mesmo tempo.
Ainda bem que a filha estava ali do lado dela, sempre. Existem coisas que só se pode compartilhar com uma filha mulher. E é por isso que ele sempre achou que ter uma filha mulher era ao mesmo tempo um pesar e uma alegria. Um pesar porque era triste saber que, por mais que os tempos tivessem mudado, ela iria assistir a alguém que amava incondicionalmente sofrer nas mãos dos homens como ela própria tinha sofrido. E uma alegria porque sabia que tinha uma amiga para a vida toda, alguém com quem dividir o sentimento de solidão que toda mulher tem.
Um dia o telefone tocou, Sônia atendeu e achou que ainda estava dormindo. Só podia estar sonhando. A voz do outro lado disse que era uma enfermeira do hospital onde o senhor Paulo Carvalhal estava internado. Disse que o paciente tinha saído do coma e falado com outra enfermeira, e que depois disso o médico tinha examinado ele e constatado que ele estava bem. Ela pegou o carro. Estava sonhando, pensou. Só podia ser. Chegou no hospital não sabe como, e correu pro quarto onde o Paulo estava, e quando entrou ele estava de olhos abertos, a enfermeira que foi com ela rindo e fazendo comentários, e ele não fez nenhuma piada mas mesmo assim ela riu e chorou ao mesmo tempo, e só depois muito depois foi lembrar de ligar para a filha, a sogra, o cunhado e alguns amigos.
Em pouco tempo, parecia que nada tinha acontecido ao Carvalhal. Fora o lapso de memória (ele não se lembrava do acidente), ele não tinha ficado com seqüelas e já estava de volta à rotina. Mas as coisas não eram mais as mesmas. E isso era bom. Como que por um milagre, Carvalhal era o mesmo, mas era outra pessoa. O Paulo da adolescência de Sônia, aquele por quem ela havia se apaixonado há mais de 20 anos. Um homem dedicado, atencioso, amoroso. Trazia presentes pra ela sem motivo. No fim do mês, o salário ia todo pra mão da mulher. Vamos trocar os móveis, querida, dizia ele. Não chegava mais tarde em casa, bebia só de vez em
quando em reuniões de família, até a tal da Vanessa ele tinha largado.
Soninha trabalhava como secretária num consultório de psicologia. Durante o período do coma de Carvalhal, todos tinham sido muito compreensivos com ela, que às vezes passava tardes no hospital. Aliás, todas: no consultório só trabalhavam mulheres. Umas separadas, outras casadas, as mais novas solteiras, todas sabiam o que significava ser mulher. Por isso todas entenderam muito bem o sofrimento dela desde o acidente, e ficaram muito felizes com a recuperação do marido, e mais felizes ainda com a supreendente mudança que aconteceu na vida do casal. Não cansavam de brincar com a história:
– Em que lugar da cabeça tem que bater pra endireitar o homem, Soninha?
E depois todas riam. Mas no fundo queriam mesmo era que existisse uma solução como essa.