Coincidências
Chegou em casa e foi se deitar. A noite tinha sido cansativa: muitos sorrisos, conversas com meros conhecidos, o reencontro com velhos amigos. Estava feliz, claro: seu último livro tinha acabado de ganhar mais um prêmio. Além da grana, vinda em muito boa hora, tinha o reconhecimento, o júri formado por alguns dos autores que tinham marcado a sua vida.
Olhou pro lado e viu que o marido já dormia. Estava acostumada, desde que ainda eram namorados sempre tinha sido assim: ele pegava rapidamente no sono e ela ficava acordada por horas e horas, divagando e virando de um lado para o outro na cama. E era impressionante como ele se mantinha abraçado a ela durante toda a noite – foi o único que conseguiu isso.
O livro mais recente, aliás, tinha sido inspirado por ele. E tinha várias passagens sobre a vida dos dois: o tempo em que ficaram separados, a reconciliação e o período feliz que se seguiu, o filho que ela esperava e acabou perdendo, o tempo morando no exterior. Mas o impressionante é que a obra dela não era auto-biográfica. Pelo menos não da maneira tradicional: tudo tinha sido escrito antes de acontecer.
É claro que tudo o que estudou a tinha tornado um pouco cética diante da vida, e ela pensava que podia ter acabado se influenciando pelo que escrevia a ponto de tornar aquilo realidade. Mas de vez em quando ainda admitia a possibilidade de existir um quê de premonitório no que escrevia.
Desde antes de publicar o primeiro conto, num jornal, era assim: tinha uma idéia súbita, escrevia (sempre em primeira pessoa) e tempos depois (às vezes poucas semanas) aquilo acontecia. É claro que levava tempo escrevendo e reescrevendo, mas a idéia principal sempre vinha assim, num ímpeto.
Achou engraçado, outro dia mesmo conversara com um amigo, também escritor, sobre isso. Ele era interessado em assuntos místicos e ficava muito impressionado com isso, desde as primeiras vezes em que aconteceu. Depois ela acabou se distraindo com as lembranças da noite anterior e dormiu.
A vida parecia mesmo um sonho. Quem diria que algum dia ela viveria de escrever, aquilo que ela fazia por necessidade, por não ter escolha? Às vezes lembrava dos tempos em que tinha medo de nada dar certo e sorria, feliz.
Passou-se algum tempo e ela já estava com algum material do novo livro pronto. Mais uma idéia súbita, com os mesmos elementos onipresentes em sua obra: primeira pessoa, sonhos, fobias, muita reflexão e pouca ação, amor, histórias absurdamente inteligadas. Os amigos pra quem mostrara até agora tinham gostado. Mas eles ainda não sabiam do final, que ela já tinha na cabeça: dessa vez a personagem principal morria.
Só quando estava conversando com o tal amigo impressionável, o que também era escritor premiado, é que se lembrou das coincidências entre o que escrevia e a sua vida até então. Você não pode escrever que morre, insistia ele. Que bobagem, ela pensou. Então não posso ter liberdade pra criar por conta de algumas coincidências? Não existem coincidências, ele dizia, como sempre.
Depois de mais alguns sonhos, conversas e outras tantas coincidências, acabou ficando um pouco assustada e desistiu de escrever aquela história. Escreveu contos, artigos, até iniciou outro romance, mas sempre parava no meio. Não ficava satisfeita com nada do que escrevia, até porque a história interminada não saía de sua cabeça. O editor já começava a cobrar um novo livro, os amigos perguntavam sobre a continuação dos trechos que haviam lido, jornalistas especulavam em torno do romance do qual tinham publicado trechos.
Estava angustiada. Não conseguia mais escrever nada de que gostasse – e, afinal, escrever era a sua vida, não somente em termos financeiros: era necessidade, como ela não se cansava de dizer. Não podia continuar assim. Não. E parecia claro agora que enquanto ela não terminasse o livro que tinha vindo à cabeça não conseguiria escrever mais nada que prestasse. Então era hora de parar com bobagens e fazer o que tinha que ser feito.
Nos meses seguintes, dedicou-se a terminar o romance, apesar do medo do marido e de alguns amigos. Teve alguns sonhos e viveu situações que aproveitou na trama, a história foi se completando, acabar aquele livro foi uma tarefa até que fácil. Depois de aprovado, mais uma vez um livro seu seguiu a trajetória de boas críticas e indicações para prêmios, além de uma boa aceitação pelo público.
E agora ela estava ali, ansiosa, preparando-se para a cerimônia de entrega de um dos prêmios mais importantes do país. Não sabia o porquê da angústia. O marido notou uma certa inquietação, e disse não fica nervosa, eu estou com você, como sempre. Feliz e mais tranqüila, ela respondeu eu te amo, e seguiram para a festa.
Depois de muita expectativa, o resultado: o prêmio era dela, sim. Foi ovacionada, e fez um discurso emocionado ao recebê-lo. Ao contrário das outras vezes, apesar de cansada, resolveu ir comemorar com os amigos e parentes de pois da cerimônia. Foram a um pequeno restaurante que ela adorava, e era tanta gente que quase ocuparam o lugar inteiro.
Muito obrigada a todos vocês, ela disse. Cada pessoa que está aqui foi importante para que a minha vida seja o que ela é agora, para que este momento esteja acontecendo. Os olhos marejados eram uma surpresa: logo ela, tão reservada. Ela, que costumava fazer piadinhas nos momentos em que estava mais emocionada.
Já em casa, se preparava para deitar-se. Dessa vez não estava cansada. Estava feliz. Beijou e abraçou o marido, que logo dormiu, como sempre. E dessa vez ela não ficou por horas e horas divagando. Deitou e em seguida adormeceu, a expressão tranqüila. Dessa vez ela não acordaria. Mas isso já era esperado.