Meu avô
Esses dias estava arrumando as minhas coisas e encontrei um livro que meu avô tinha me dado. Me lembro muito bem de quando ele me deu esse livro. Não era novo, meu avô tirou da coleção dele. Ele adorava ler, passava horas no escritório. Aliás, desde que eu me lembro, ele já quase não saía de casa, a não ser aos domingos, para almoçar, e em dias de ir ao banco.
Ele não era de demonstrar afeto. Lembro de minha avó, sempre atenciosa e carinhosa, e dele, calado ou nervoso, discutindo com ela. Ou de quando nós íamos cumprimentá-lo e ele, mau-humorado, dizia: "Beijo pra quê?" Não é difícil entender esse comportamento. Minha mãe contava que, certa vez, a mãe dele virou-se para minha avó e disse: "Você faz muito carinho nos seus filhos. Isso estraga eles. Carinho em filho a gente só faz quando eles estão dormindo."
A influência da minha avó em mim sempre foi muito clara. Ainda lembro de quando eu era pequena e ficava na cozinha, por horas e horas, olhando ela trabalhar. No meu aniversário, o bolo preferido (até hoje é assim). Muito habilidosa, sempre aprendendo e fazendo coisas novas. Entre as duas avós, não era difícil ver com qual das duas eu tinha mais afinidade, qual me servia de exemplo. Mas o meu avô, não. Ele era o único que eu tinha, minha única referência.
E era essa pessoa difícil. As discussões nas reuniões de família aos domingos, ele exaltado. E como era metódico. Levantava muito cedo, ia para a sala e dormia sentado no sofá. Fazia as refeições sempre no mesmo horário: perguntava as horas, e em seguida dizia para a minha avó: "Estou com fome."
Mas também tinha um outro lado que só agora eu vejo. Ainda pequena, quando ele morava em Vila Isabel, eu passava lá algumas tardes. Mal chegava, meu vô me dava escondido um pacote de biscoito mirabel. Tirava de uma parte do móvel da sala onde guardava chocolates e bebidas, até onde eu podia ver. Era o móvel dos segredos do meu avô, na minha cabeça. O móvel ainda existe, no outro apartamento, e quando eu vejo me lembro dessa época.
Meus pais seguiam uma alimentação macrobiótica, que era bastante comum. Para mim, que não comia brigadeiro em festa nem tomava coca-cola, aquele biscoito era a coisa mais gostosa do mundo. Um ritual, um segredo meu e do meu avô. Ele, como sempre, não dizia nada. Só me dava o biscoito, sempre.
O livro é uma seleção de crônicas do Rubem Braga. Dei uma folheada, li alguns textos ao acaso e lembrei que, certa vez, um amigo comparou a minha escrita à desse autor. Guardadas as devidas proporções, acho que faz sentido, me identifiquei bastante com os textos. Quando o vovô me deu, me espantei. Primeiro, porque trazia um desenho de uma mulher nua lendo um livro na capa. Não que eu nunca tivesse visto algo do tipo, mas era o meu avô que estava me dando aquilo!
Depois, era o meu primeiro livro de adulto. Eu sempre gostei muito de ler, e minha mãe, meus padrinhos, muitas pessoas sempre me deram livros de presente. Mas aquele livro que o meu avô estava me dando não era como os outros. Ele não trazia figuras, nem contava histórias de adolescentes. Ele era um livro de um autor reconhecido, como os da minha mãe que eu costumava pegar sem pedir ou os que a minha tia-avó Íris emprestava. Só que desta vez eu não pedi: o vovô Luiz me deu, sem eu dizer nada. Simplesmente chegou, com aquele jeito contido, e disse "Toma." Eu, surpresa, não me lembro de ter dito nada muito diferente de "Obrigada".
Mais tarde, ele ainda me deu outros livros de sua coleção. Além do livro de crônicas, lembro bem de uma gramática de italiano e outra de alemão. Parece que, fechado em si mesmo, o meu avô já imaginava que dali alguns anos eu desenvolveria uma paixão irrecuperável pelas línguas. Que o meu amor pelos livros continuaria o mesmo. Que algum dia eu teria uma relação muito mais estreita com aquele livro do Rubem Braga se poderia supor.
Todas essas lembranças me vêem à cabeça e eu lamento que só agora, quando ele não está mais aqui, eu tenha percebido as palavras e o afeto do meu avô contidos em cada gesto. Que só agora eu tenha me dado conta de que ele prestava atenção em mim como poucas pessoas. Se ele me desse aquele livro hoje, eu diria: "Também te amo."