O tapinha não dói mais?
Kamille Viola
Não faz muito tempo, um dos assuntos mais constantes na mídia e rodinhas de conversa da classe média era a explosão do funk carioca. Muitos eram impiedosos com as músicas que tocavam incessantemente nas rádios e na televisão, afirmando que eram um mau exemplo por estimular a pornografia e a violências contra as mulheres.
Embora não seja das maiores entusiastas do funk carioca atual, eu sempre perguntei: por que chamar de "cachorra" e "potranca" ofende mais que chamar de "ordinária", como o axé faz(ia)? Por que reclamam do tapinha do funk e não fazem nada contra as novelas da Globo, em que homem bater em mulher virou rotina? — lembra da surra que o personagem do Marcos Palmeira deu na Sandrinha, interpretada pela Adriana Esteves em "Torre de Babel"? Foi pico de audiência, as pessoas festejaram a cena. Sendo que, na mesma novela, havia personagens masculinos que traíam (o motivo alegado para a surra em Sandrinha) e ninguém pedia a punição deles.
Talvez a resposta pra isso esteja na música de uma dupla de MCs (o nome eu esqueci): "É som de preto / e favelado". Esse é o problema. A população em peso consome o funk (mesmo reclamando) quando ele tá na Globo, no Faustão, no Gugu, tem a cara oxigenada da Lady Lu, e não a petulância, a marra e a
cara de pobre da Tati Quebra-Barraco (só pra lembrar, a "protegida" de Mr. Sam regravou a "Dança da Soka-Tcheka", conhecida há muito nas comunidades na voz de Tati).
É muito fácil engolir o discurso conservador contra o funk e não ver que: primeiro, nem todas as letras de funk carioca são machistas e, depois, que, quando são, estão refletindo uma realidade do Brasil. Como a história de que meninas engravidaram no trenzinho do baile funk (pra mim, conto da carochinha, igual à história da cadeira em que quem sentava ficava grávida). Ora, não é a música que faz as pessoas engravidarem, é o sexo. E isso eles podem fazer em qualquer lugar, não é privilégio do baile funk. O sexo é muito presente na vida dos jovens brasileiros — e não vamos esquecer que os autores dos funks são, oh! jovens brasileiros.
Certo estava o Tutty Vasquez, em artigo publicado no Jornal do Brasil em 18/03/2001: tem "gente que acha mais chocante pobre se divertindo do que se matando!" É isso aí. Agora que os pobres voltaram para os seus devidos lugares — que história é essa de invadir as salas de estar da classe média? E de patricinhas e pitboys dançarem lado a lado com
pixadões e
popozudas no Castelo das Pedras, baile que acontece numa FAVELA? — ninguém se incomoda com a "violência", a "pornografia" e o "machismo" do funk.